Revista Brasileira de Ciência Política, n 20. Brasília, maio - agosto de 2016, pp 121-164.
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0103-335220162004
Cristiana Losekann
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A política dos afetados pelo extrativismo na
América Latina
2
e politics of people aected by extrativism in Latin America
Introdução
A América Latina concentrou, entre 2006 e 2013, no comparativo
com outros continentes, o maior número de protestos demandando
por “justiça ambiental”, segundo o levantamento feito pelo Initiative
for Policy Dialogue da Columbia University (Ortiz et al., 2013).
Outros levantamentos relacionados, tais como os da Organização
Não Governamental (ONG) Global Witness,
3
são convergentes,
apontando a região como a mais perigosa no mundo para ambien-
talistas, tendo em vista o número de assassinatos desses ativistas.
Segundo Pablo Villegas, do Centro de Documentación e
Información Bolivia (Cedib), é possível fundamentar que há um
1 É professora adjunta de Ciência Política na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Possui
doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolveu
pesquisas sobre processos de participação na política ambiental no Brasil com ênfase no governo
Lula. Atualmente pesquisa sobre a mobilização do direito como repertório de ação coletiva nos
conitos ligados ao extrativismo na América Latina e os efeitos do uso de estratégias judiciais.
E-mail: <cristiana.losekann@ufes.br>.
2 Agradeço a todas as pessoas que compartilharam suas experiências de vida e de luta comigo,
principalmente Alexandre Anderson, Daize Menezes e Kátia dos Santos. Conhecer suas trajetórias
e vivenciar as situações de injustiça às quais estão submetidos mudaram a minha perspectiva
sobre o mundo. Agradeço, ainda, especicamente, a Bruno Milanez as sugestões e críticas ao texto
original. Este trabalho foi originalmente apresentado no GT 14 “Entre as ruas e os gabinetes” durante
o 39º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(Anpocs). Sou grata a todos que apresentaram comentários e sugestões ao texto. O desenvolvimento
desta pesquisa tornou-se possível com o apoio nanceiro do edital Proext/2014 do Ministério da
Educação (MEC) brasileiro.
3 Para mais informações, acessar: <https://www.globalwitness.org/campaigns/environmentalactivists/
death-comrade/>.
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crescimento nos conitos ligados ao extrativismo (Villegas, 2014).
O autor argumenta que, “de manera general, la conictividad social
está creciendo en intensidad y extendiéndose, más allá de los movi-
mientos socioambientales e indígenas, a los urbanos y sindicales
[...]” (op. cit., p. 9). Segundo os dados do Atlas of Environmental
Justice e do Observatorio de Conictos Mineros de América Latina
(OCMAL), há um aumento expressivo de conitos mineiros espe-
cialmente entre os anos 2006 e 2008, no panorama geral da América
Latina (op. cit., p. 10).
Os conitos socioambientais em questão estão relacionados à
matriz econômica adotada em boa parte dos países latino-ame-
ricanos que apostam em um incremento na vocação histórica à
exportação de commodities minerais e agrícolas da região. Segundo
dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
(Cepal), o setor extrativo de minério cresceu substancialmente na
última década, com forte incentivo da China, novo grande parceiro
comercial dos países desse continente. Esse crescimento do extrati-
vismo é monitorado pelo Cedib, que aponta um aumento geral da
participação de produtos primários nas exportações, sendo que os
países cujo aumento foi maior são: Bolívia, Colômbia, Uruguai e
Brasil.
Intelectuais da região que acompanham o processo têm carac-
terizado o contexto como um “desenvolvimento extrativista”, que
combina a superexploração dos recursos naturais com a expansão
das fronteiras territoriais (Svampa, 2012, p. 17). Segundo Milanez
e Santos (2013), o contexto político-econômico atual latino-ame-
ricano poderia ser compreendido a partir da categorização “neoe-
xtrativismo”, pois trata-se da combinação de elementos tradicionais
do chamado “extrativismo” com aspectos novos (Gudynas, 2009).
Ocorre que o extrativismo de grande porte toma grandes
extensões de territórios, os quais já são ocupados por populações
indígenas, ribeirinhos, camponeses etc. Sendo assim, os conitos
ambientais ligados ao extrativismo cresceram na região nas últimas
décadas, ampliando-se também os protestos, as resistências e as
mobilizações que se enquadram nesse tema. Nesse contexto, as
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reivindicações passam a rearticular o enquadramento dos “afetados”
ou “atingidos” por diversos tipos de grandes projetos de desenvol-
vimento relacionados às atividades extrativistas, mormente aqueles
relativos à produção de petróleo e gás e à mineração em geral.
4
Contudo, considerando os questionamentos lançados pela teoria
da mobilização de recursos (o que não significa uma adesão às
suas repostas), sobretudo aquele que pergunta “se nós podemos
encontrar descontentamentos com a política sempre, e em todas
as sociedades, por que nós não encontramos com a mesma recor-
rência processos de mobilização contestatória?” (McCarthy e Zald,
1977), devemos considerar que os fatores macroestruturais não são
os únicos determinantes dos processos de mobilização.
Outra observação problematizadora vem da análise das emoções
na ação coletiva. Casos que envolvem violência extrema, poderes
imensamente desiguais ou impactos terríveis ao ambiente, podem
levar facilmente a processos de resignação, fatalismo − como alerta
Jasper (2012, p. 36) −, e não à ação coletiva. O que explica que um
determinado contexto de extremo impacto ambiental seja vivido
como sofrimento, como, por exemplo, analisaram Auyero e Swistun
(2009) sobre a Villa Inamable na argentina, e outro análogo seja
transformado em objeto de luta?
Buscando encontrar o porquê de comunidades que enfrentam
problemas similares terem reações diferentes em termos de mobili-
zação, McAdam e Boudet (2012) analisaram, de forma comparada,
diferentes comunidades nas quais foram projetados empreendi-
mentos de geração de energia (energy projects) nos Estados Unidos
– chamadas comunidades “de risco”. O objetivo deles era justa-
mente entender por que algumas comunidades reagem com fortes
mobilizações e em outras as mobilizações são fracas ou inexis-
tentes. O estudo respondeu à questão por meio da combinação de
variáveis propostas na teoria do processo político. Segundo eles,
é uma mistura de oportunidades políticas, capacidade de organi-
zação e percepção local sobre os empreendimentos que determina
4 Pode-se incluir também a parte da produção agrícola enquanto commodities, porém este trabalho
restringe-se à mineração, ao petróleo e ao gás.
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a existência e a intensidade das mobilizações. Embora reconheçam
que fatores contextuais especícos de cada localidade são determi-
nantes, eles não chegam a aprofundar aspectos culturais ou variá-
veis microssociais. Predominam variáveis macro.
5
Nossa pesquisa não buscou responder exatamente à mesma
questão. Nosso recorte não são as comunidades impactadas, mas
as redes de ativismo estabelecidas em torno de processos já cons-
tituídos de mobilização. Assim, guardadas as devidas diferenças,
argumentamos que, para explicar a constituição de um processo de
ação coletiva confrontador, é necessário olhar para outros aspectos
além de macroexplicações. Precisamos compreender as microfun-
dações, valorizando ação e interação, buscando identicar por meio
de quais mecanismos se constituem as mobilizações contestatórias
aos projetos de grande impacto socioambiental.
Portanto, este trabalho apresenta um levantamento amplo dos
atores, dos repertórios, das performances e dos ideais que consti-
tuem aquilo que estamos chamando de “a política dos afetados”.
Não se trata exatamente de uma análise de movimento social, mas
da compreensão processual da mobilização que conecta diferentes
atores e escalas, conferindo um papel relevante inclusive para atores
que não estão exatamente mobilizados. O trabalho tem, portanto,
objetivos descritivos de evidenciar um processo de mobilização
ainda pouco conhecido, mas também tem objetivos analíticos.
Analisaremos como aspectos micro e macro encontram-se combi-
nados na constituição dos atores, identicando seus repertórios,
seus enquadramentos, seus aspectos emocionais e o uso de oportu-
nidades políticas e legais. Estes aspectos marcam a constituição de
um processo de “mobilização do direito” caracterizado, entre outras
coisas, pela constituição de estratégias legais ou judiciais.
5 O estudo apresenta um debate bastante interessante sobre o desenho de pesquisa nas investigações
sobre movimentos sociais. Fazem uma forte crítica aos estudos centrados nos movimentos sociais,
acusando-os de supervalorizar os processos de mobilização, perdendo, assim, em capacidade
explicativa mais ampla. Adicionalmente, uma das conclusões mais instigantes dessa investigação é
de que mesmo mobilizações muito pequenas ou fracas parecem ser determinantes para o sucesso
ou o fracasso dos projetos de empreendimentos em questão.
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Desenho da pesquisa
As análises aqui apresentadas são preliminares de uma pesquisa
exploratória fundamentada em metodologia qualitativa e opera-
cionalizada por observação participante e pesquisa documental.
O primeiro método envolve uma dimensão ativa com atenção
etnográca, a partir de um projeto de extensão que vem acompa-
nhando, nos últimos quatro anos, atores em lutas socioambientais
na América Latina, articulados pela designação “afetados” ou “atin-
gidos” por empreendimentos extrativos. Foram realizadas cinco
saídas de campo (em que eu participei, mas outras saídas de campo
foram realizadas pela equipe do Núcleo de Pesquisa e Extensão) com
visitas aos territórios afetados, em que foram realizadas conversas
informais, oficinas estruturadas e a participação em atividades
organizadas por ONGs e associações. Destas visitas, foram reali-
zados registros audiovisuais, os quais são apresentados ao longo
deste artigo também com função descritiva e argumentativa.
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Além das visitas aos territórios afetados, acompanhamos diversos
eventos e atividades de mobilização organizados pelos atores envol-
vidos. Já a pesquisa documental diz respeito à leitura e à catalogação
das publicações produzidas por esses atores, consistindo na análise
e no levantamento de diversos materiais, tais como: livros, artigos,
panetos, sites, cartograas, cartilhas, relatórios de denúncia de
impactos e injustiças ambientais, observatórios e outros. Dos proce-
dimentos técnicos que sustentam estas análises, utilizamos a análise
de conteúdo e produzimos um banco de dados que sistematiza os
atores, os repertórios, os enquadramentos e os ideais dessas lutas.
6 Em função das restrições de nosso nanciamento (edital Proext 2014 MEC SESu), que não permitia
o gasto com atividades fora do país, todas as atividades de campo foram realizadas no Brasil, porém
isto não nos impediu de conhecer a atuação das organizações internacionais estudadas, já que
participamos de diversos eventos nos quais estabelecemos conversas, realizamos entrevistas e
criamos vínculos duradouros com informantes de outros países. Esse foi o caso do Seminário
Neoextrativismo na América Latina, realizado em Vitória, em 2014, e que contou com a participação
de representantes das seguintes organizações: Oilwatch (Equador), Cedib (Bolívia), Multisectorial
Contra la Fractura Hidraulica de Neuquén (Argentina), OCMAL (Chile), Asamblea Nacional de Afec-
tados Ambientales (México). Outros contatos foram estabelecidos em eventos similares ocorridos
em Minas Gerais em 2014 e 2015 e no Maranhão em 2014. Além disso, acompanhamos ações de
vários ativistas dessas organizações em intercâmbio no Espírito Santo. Este é o caso principalmente
do coletivo Yasunidos e da rede Oilwatch.