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DOSSIÊ
Dos “abismos do inconsciente” às razões
da diferença:
criação estética e descolonização da desrazão
na Reforma Psiquiátrica Brasileira
JOÃO ARRISCADO NUNES
*
RAQUEL SIQUEIRA-SILVA
**
* Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (Portugal)
** Universidade Federal do Sul da Bahia (Brasil)
1 Artigo elaborado no âmbito do projeto de investigação “ALICE – Espelhos Estranhos, Lições Impre-
vistas: Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do Mundo”, coordena-
do por Boaventura de Sousa Santos (alice.ces.uc.pt) no Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra - Portugal. O projeto é financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação, 7º
Programa Quadro da União Europeia (FP/2007-2013) /ERC Grant Agreement n. [269807]”.
Resumo
O conceito de linha abissal, de Boaventura de Sousa Santos, assinala a divisão
do mundo em zonas “civilizadas” e “selvagens”. A desumanização associada à
atribuição de desrazão, loucura ou alienação e, mais recentemente, de distúrbio
ou transtorno mental aparece como expressão dessa linha abissal. Uma das res-
postas mais radicais e criativas a essa desumanização assumiu formas inovadoras
de ação coletiva e de redefinição do espaço dos saberes e modos de expressão no
quadro da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Este processo – aqui discutido a partir
das produções e práticas de grupos musicais – tornou possível, em particular, o
reconhecimento da dimensão estética como elemento central da descolonização
dos saberes e práticas da saúde mental, e da invenção de ecologias de saberes que
descentram radicalmente a autoridade dos saberes hegemônicos
1
.
Palavras-chave: Saúde mental. Linha abissal. Reforma Psiquiátrica Brasileira. Esté-
tica. Grupos musicais. Ecologia de saberes.
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From the “abysses of subconscious” to the reasons of difference:
esthetic creation and decolonization of unreason in the Brazilian
Psychiatric Reform
Abstract
The concept of abyssal line, proposed by Boaventura de Sousa Santos, signals the
division of the world into “civilized” and “savage” zones. De-humanization asso-
ciated with the attribution of unreason, madness or alienation and, more recently,
of mental disorder appears as an expression of that abyssal line. One of the most
radical and creative responses to this form of de-humanization was shaped as inno-
vative forms of collective action and of the redefinition of the space of knowledges
and modes of expression within the Brazilian Psychiatric Reform. This process – dis-
cussed here by drawing on the productions and practices of music groups – allowed
the recognition of the esthetic dimension as a core element of the decolonization
of knowledges and practices of mental health and of the invention of ecologies of
knowledges radically decentering the authority of hegemonic forms of knowledge.
Keywords: Mental health. Abyssal line. Brazilian Psychiatric Reform. Esthetics.
Music groups. Ecology of knowledges.
A
s linhas abissais que, segundo Boaventura de Sousa San-
tos, separam as zonas “selvagens” das zonas “civiliza-
das”, desenham uma nova topologia social das relações
de inclusão e de exclusão, apresentando continuidades
com as divisões traçadas pelo colonialismo:
O pensamento moderno ocidental continua a operar me-
diante linhas abissais que dividem o mundo humano do
sub-humano, de tal forma que princípios de humanidade
não são postos em causa por práticas desumanas. As colô-
nias representam um modelo de exclusão radical que per-
manece atualmente no pensamento e práticas modernas
ocidentais tal como aconteceu no ciclo colonial. Hoje como
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então, a negação do outro lado da linha faz parte integrante
de princípios e práticas hegemônicos (Santos, 2010, 39).
A figura da colônia transfigura-se hoje na de Guantânamo, que
representa uma das manifestações mais grotescas do pensa-
mento jurídico abissal, da criação do outro lado da fratura
enquanto um não-território em termos jurídicos e políticos,
um espaço impensável para o primado da lei, dos direitos
humanos e da democracia (Santos, 2010, 39).
O mesmo autor observa que, hoje,
existem milhões de Guantânamos nas discriminações sexuais
e raciais quer na esfera pública, quer na privada, nas zonas
selvagens das megacidades, nos guetos, nas sweatshops,
nas prisões, nas novas formas de escravatura, no tráfico ile-
gal de órgãos humanos, no trabalho infantil e na exploração
da prostituição (ibid.).
Poderíamos acrescentar a esta lista a negação da humanidade de
muitos seres humanos, através da atribuição de desrazão, alienação, in-
sanidade, degenerescência ou anormalidade, às pessoas marcadas com
o estigma do que tem sido chamado, ao longo da história da psiquiatria,
de doença mental, distúrbio ou transtorno mental, ou com alguma for-
ma patologizada de desajustamento à ordem social ou à “normalidade”.
Seres humanos que foram confinados, isolados, muitas vezes sujeitos a
maus-tratos, torturas, abandono, isolamento social ou intervenções alega-
damente terapêuticas que os reduziam a uma condição menos-do-que-
-humana, legitimada pelo direito – em nome da necessidade de lidar com
a sua alegada periculosidade, para si próprios e para os outros – e pela
ciência – em nome do diagnóstico e da cura de males que eram sempre
neles próprios procurados, na sua mente e nos seus comportamentos.
2
2
Sobre os temas da anormalidade e da degeneração, veja-se Foucault, 2001; Caponi, 2012.
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Os “loucos” e “loucas” aparecem como exemplos precoces de formas
de negação da humanidade que, como nos lembra Foucault, são indisso-
ciáveis da emergência da modernidade ocidental. O saber psiquiátrico e o
asilo constituíram os dois lados de um processo de confinamento daqueles
que viriam a ser designados de “alienados” – um termo que concentra sen-
tidos científico-técnicos e jurídico-políticos, paralelo ao de outras formas de
desqualificação da humanidade dos “outros” racializados que habitavam os
territórios colonizados do que hoje chamamos o Sul global.
Mbembe (2014, 11) refere o modo como, ao
reduzir o corpo e o ser vivo a uma questão de aparência, de
pele ou de cor, outorgando à pele e à cor o estatuto de uma
ficção de cariz biológico, os mundos euro-americanos em
particular fizeram do Negro e da raça duas versões de uma
única e mesma figura, a da loucura codificada.
É importante lembrar que a patologização – e em particular a psi-
quiatrização – da diferença constituiu, historicamente, uma das maneiras
mais comuns de dar conta da diferença do colonizado e do “outro” racia-
lizado.
3
Mas poderíamos ampliar esta inscrição no corpo, nos modos de
olhar, de falar, de se relacionar com o mundo e com os outros, às formas
de tornar visível e inteligível a desrazão, a alienação ou o que é descrito,
hoje, como distúrbio ou transtorno mental, que caracterizam os saberes
canônicos agrupados no campo da saúde mental. A codificação da lou-
cura como atributo daqueles que transgridem os limites do humano passa
por quadros nosológicos, práticas e instituições que procedem à distribui-
ção da normalidade e da anormalidade, da razão e da alienação, que é
também uma distribuição dos corpos pelas zonas “civilizadas”, da exis-
tência normal, da regulação e da integração, e pelas zonas “selvagens”,
3
Sobre este tema, veja-se as contribuições fundamentais de Frantz Fanon (2008, 2011), e a
excelente atualização de Beneduce (2007). Por limitações de espaço, deixamos a discussão
detalhada deste ponto para uma publicação futura.
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do não-ser, da negação da humanidade, da violência e da exclusão. Este
processo de desumanização permitiu, como nota Santos, a afirmação da
normalidade associada à razão e à ordem enquanto atributos próprios
da condição humana, e legitimar intervenções “normalizadoras”, através,
nomeadamente, do direito, da educação e da ciência – com destaque
para a medicina e, em particular, o saber psiquiátrico –, mas também da
violência do Estado:
A ‘doença mental’, como categoria de acusação, é um recur-
so amplamente utilizado para nomear a diferença e diver-
sidade de alguns ou para invalidar a atitude rebelde ou de
luta de pessoas e sujeitos coletivos, como é o caso exemplar
da denominação de ‘Loucas da Praça de Maio’, dada pelos
militares às mães de desaparecidos da ditadura argentina (...),
além de tantas outras formas de estigmatização, violências e
constrangimentos (Amarante; Torre, 2010, 153).
A abordagem que propõe Boaventura de Sousa Santos permite
entender o alcance que mantêm as palavras com que, em 1978, Franco
Basaglia, o mentor da reforma da saúde mental na Itália, se referia, numa
conferência de imprensa, à sua visita à colônia de Barbacena, em Minas
Gerais: “Acabei de visitar um campo de concentração nazista...”.
A condição dos internados na instituição psiquiátrica de Barbacena
foi objeto de denúncias sucessivas, desde a década de 60. Um balanço
recente da história de Barbacena, onde 60 mil vidas se perderam, levou
mesmo a que ela fosse descrita como o “holocausto brasileiro” (Arbex,
2013)
4
. Mas a declaração de Basaglia passava a denúncia das condi-
ções de internamento nas instituições asilares para um novo patamar: o
da desumanização dos internados, e da sua completa segregação de um
4
A comparação entre o manicômio e o campo de concentração foi frequente durante os pri-
meiros anos da reforma psiquiátrica na Itália, na década de 60. Veja-se Foot, 2014, capítulo
5. Para o Brasil, Arbex, 2013.