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Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde

TLDR
It is concluded that it is necessary to review the issue of diagnosis, given that the existence of a prior pathology is not required to access the SUS and it is important to develop educational programmes and permanent campaigns concerning the right toAccess the healthcare system free from discrimination and to use the adopted name.
Abstract
The objective of this study was to discuss the difficulties of trans people living in the metropolitan region of Greater Vitoria, Espirito Santo, Brazil, in accessing the health services of the Unified Health System (Sistema Unico de Saude - SUS). We used a qualitative approach through semi-structured interviews with 15 trans people. The results point to disrespect toward the adopted name, discrimination, and the diagnosis required for the gender reassignment process as major limitations to accessing the healthcare system. The diagnosis helps hide the responsibility of heteronormativity and gender binarism in the social marginalization of trans people. It is concluded that it is necessary to review the issue of diagnosis, given that the existence of a prior pathology is not required to access the SUS. It is important to develop educational programmes and permanent campaigns concerning the right to access the healthcare system free from discrimination and to use the adopted name.

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ARTIGO ARTICLE
2517
1
Universidade Federal do
Espírito Santo. Av. Fernando
Ferrari, 514, Goiabeiras.
29075-910 Vitória ES
Brasil. xela_alex@bol.com.br
Dificuldades vividas por pessoas trans
no acesso ao Sistema Único de Saúde
Difficulties experienced by trans people
in accessing the Unified Health System
Resumo Objetivou-se discutir as dificuldades de
pessoas trans moradoras da região metropolitana
da Grande Vitória/ES em acessarem os serviços de
saúde no SUS. Utilizou-se uma abordagem qua-
litativa por meio de entrevistas semiestruturadas
com 15 pessoas trans. Os resultados apontaram
o desrespeito ao nome social, a discriminação e
o diagnóstico no processo transexualizador como
principais limitações no acesso ao sistema de saú-
de. Afirma-se que o diagnóstico contribui para
ocultar a responsabilidade da heteronormativida-
de e do binarismo de gênero pela marginalização
social das pessoas trans. Conclui-se que é neces-
sário modificar o diagnóstico em sua função, já
que a existência de uma patologia prévia não é re-
quisito para acessar o SUS. Aponta-se, também, a
importância de elaborar programas de educação e
campanhas permanentes sobre o direito de acesso
ao sistema de saúde livre de discriminação e com
uso do nome social.
Palavras-chave Corpo, Saúde, Identidade de gê-
nero, Pessoas transgênero
Abstract The objective of this study was to dis-
cuss the difficulties of trans people living in the
metropolitan region of Greater Vitória, Espíri-
to Santo, Brazil, in accessing the health services
of the Unified Health System (Sistema Único de
Saúde - SUS). We used a qualitative approach
through semi-structured interviews with 15 trans
people. The results point to disrespect toward the
adopted name, discrimination, and the diagnosis
required for the gender reassignment process as
major limitations to accessing the healthcare sys-
tem. The diagnosis helps hide the responsibility of
heteronormativity and gender binarism in the so-
cial marginalization of trans people. It is conclud-
ed that it is necessary to review the issue of diag-
nosis, given that the existence of a prior pathology
is not required to access the SUS. It is important
to develop educational programmes and perma-
nent campaigns concerning the right to access the
healthcare system free from discrimination and to
use the adopted name.
Key words Body, Health, Gender identity, Trans-
gendered people
Pablo Cardozo Rocon
1
Alexsandro Rodrigues
1
Jésio Zamboni
1
Mateus Dias Pedrini
1
DOI: 10.1590/1413-81232015218.14362015

2518
Rocon PC et al.
Introdução
A transformação do corpo apresenta-se como
esfera constitutiva da vida das pessoas. Mas, no
caso das pessoas trans, tal esfera assume uma
intensa magnitude. São variados os métodos
circunscritos nas modificações corporais empre-
endidas por pessoas trans, que passam pelo uso
de hormônios, aplicações de silicone industrial,
depilações, cirurgias plásticas, transgenitalização,
dentre outros, que variarão a partir dos desejos,
das possibilidades financeiras, das necessidades
do trabalho com sexo, etc.
1-7
.
Percebendo a pluralidade nos procedimentos
de transformação do corpo e nas possibilidades
de (auto)definição no gênero, neste texto será
utilizado o termo pessoa trans em diálogo com o
que Benedetti
5
chamou universo trans, segundo
o qual “o universo trans é um domínio social no
que tange à questão das (auto)identificações.
5
.
Contudo, aquém e além de uma política de iden-
tificação, e como base desta, situam-se a transfor-
mação corporal e a invenção de modos de vida
como processos de composição das pessoas trans.
Assim, o termo pessoas trans corresponde a um
esforço em não delimitar fronteiras entre as iden-
tidades de gênero dos participantes dessa pesqui-
sa, respeitando não só a autoidentificação como
também seus intercruzamentos nas categorias de
gênero e sexualidade disponíveis.
Estudos
1-3,8-11
expuseram inúmeras dificulda-
des no acesso e permanência das pessoas trans
nos serviços oferecidos no Sistema Único de Saú-
de, evidenciando o desrespeito ao nome social,
a trans/travestifobia como obstáculo à busca de
serviços de saúde e causas dos abandonos de tra-
tamentos em andamento. Ainda discutem a pa-
tologização das identidades de gênero travesti e
transexuais no processo transexualizador do SUS
como promotor de seletividade nos serviços de
saúde, obstruindo o acesso a muitas pessoas trans.
Segundo Mello et al.
9
, dentre a população
LGBT, as pessoas travestis e transexuais são as
que mais enfrentam dificuldades ao buscarem
atendimentos nos serviços públicos de saúde
– não só quando reivindicam serviços especia-
lizados, como o processo transexualizador, mas
em diversas outras ocasiões nas quais buscam
atendimento – pela enérgica trans/travestifobia
que sofrem atrelada à discriminação por outros
marcadores sociais – como pobreza, raça/cor,
aparência física – e pela escassez de serviços de
saúde específicos.
Esse artigo discutirá as principais dificulda-
des enfrentadas por pessoas trans residentes em
munícipios da Grande Vitória, Estado do Espírito
Santo, no acesso aos serviços públicos de saúde.
Métodos
Para o desenvolvimento deste estudo foi utilizada
abordagem qualitativa. A pesquisa foi realizada:
(a) na sede da Associação Capixaba de Redução
de Danos (ACARD), que desenvolve trabalho de
redução de danos junto à população que traba-
lha com sexo no município de Vitória/ES, dentre
a qual se encontram pessoas trans; (b) no cam-
pus da Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES), com alunas transexuais; (c) no Ambu-
latório de Urologia do Hospital Universitário
Cassiano Antônio de Moraes (HUCAM), onde
são realizadas as cirurgias de transgenitalização
e o acompanhamento clínico dos pacientes; (d)
na casa de algumas pessoas trans atendidas pela
ACARD.
A coleta dos dados foi realizada por meio de
entrevistas semiestruturadas, gravadas em áu-
dio digital com a permissão dos participantes,
orientadas por um questionário que versava so-
bre aspectos socioeconômicos – tais como idade,
identidade de gênero, orientação sexual, profis-
são, renda, escolaridade, se possuem plano de
saúde privado, bairro e município de residência
–, a frequência na busca por serviços de saúde no
SUS, as principais dificuldades enfrentadas pelos
entrevistados no acesso nos serviços buscados, as
estratégias utilizadas para modificação de seus
corpos e os impactos dessas em sua saúde.
Alguns participantes sentiram-se descon-
fortáveis em gravar a entrevista, aceitando pre-
encher o questionário. Conforme nossas orien-
tações, muitos colocaram informações além
das solicitadas pelas questões, fato que pode ter
contribuído para a redução das limitações pro-
porcionadas por esse instrumento. Também foi
utilizado um diário de campo onde foram ano-
tadas as impressões dos autores. Foi realizada
análise de conteúdo das entrevistas transcritas.
O material foi organizado a partir de três eixos
de análise: acesso aos serviços de saúde; métodos
utilizados nas modificações corporais; percepção
sobre a influencia dos últimos em sua saúde.
Constituíram o grupo estudado 15 pessoas
trans: 10 mulheres transexuais, 1 homem tran-
sexual, 2 travestis, 1 gay (realizava uso de hormô-
nios e adotava nome social feminino), residen-
tes nos municípios da região metropolitana da
Grande Vitória, Estado do Espírito Santo. Não
houve escolha ou qualquer forma de seleção

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prévia dos participantes da pesquisa. Eles foram
compondo a amostra de forma aleatória – por
indicação, proximidade ou relação com cada
novo participante – de maneira que pessoas trans
trabalhadoras e usuárias nos serviços da ACARD,
estudantes da UFES e pacientes do HUCAM in-
tegraram a pesquisa.
A participação dos entrevistados foi condi-
cionada ainda pelo preenchimento de um Ter-
mo de Consentimento Livre e Esclarecido. Essa
pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em
Pesquisa do Campus de Goiabeiras da Univer-
sidade Federal do Espírito Santo. Como forma
de garantir o sigilo dos participantes, os nomes
apresentados no texto são fictícios.
Resultados e Discussão
Nome social e discriminação
como dilemas do acesso à saúde
A autoatribuição de um novo nome acompa-
nha os processos de transformação do corpo
5,6
. O
nome carrega junto ao corpo os múltiplos senti-
dos de feminilidade e masculinidade que operam
como constituintes do gênero. Nome e corpo in-
terferem-se mutuamente. O nome, como trans-
formação incorporal
12
ou signo a designar uma
mudança que ultrapassa e radicaliza a transfor-
mação corporal, não dispensa essa última. A mu-
dança de nome incita e é incitada pelas modifica-
ções do corpo, sem, no entanto confundirem-se
ou exigirem-se necessariamente.
Segundo Teixeira
6
, as pessoas trans, em seus
processos de construção de um novo corpo, “são
conduzidas a um investimento identitário signi-
ficativo – um novo nome, um corpo modificado
– que dê sentido ao “não senso de um corpo que
parece ter se equivocado
6
. Benedetti
5
, por sua
vez, afirma que o corpo das pessoas trans “é, so-
bretudo, uma linguagem
5
. Nessas abordagens, o
nome, assim como todos os signos envolvidos no
processo de transformação
12
, é tomado como sig-
nificado, rótulo que estabelece limites em meio
ao caos do corpo em mutação. Certamente, o
nome pode assumir essa função identitária de es-
tabelecer um ser estável em meio ao devir das ex-
perimentações, mas não é sua função primordial.
O nome ou signo é, antes de tudo, outro tipo de
transformação – incorporal –, que lança o corpo
em outro ordenamento de mundo, outro jogo de
regras, enfim, outro gênero.
A produção dos corpos trans parece ser per-
meada pela produção de signos, cujas formas e
contornos se produzem em meio a jogos de lin-
guagem. Entretanto, a partir de Preciado
13
em sua
crítica à Butler
14
por conta da desvalorização des-
ta, em relação à materialidade do corpo diante da
produtividade da linguagem, afirma-se a irredu-
tibilidade do corpo à linguagem. Sendo assim, a
modificação do nome e do gênero nos pronomes
de tratamento tornam-se elementos entrelaçados
às transformações materiais do corpo.
Em 13 de agosto de 2009, o Ministério da
Saúde lançou, através da portaria nº 1820, a Carta
dos Direitos dos Usuários do SUS. A carta tornou
obrigatório haver em documentos de identifica-
ção dos usuários, como prontuários, um campo
a ser preenchido com o nome pelo qual o usuário
deseja ser chamado. Isso não deve ser realizado
de forma desrespeitosa ou preconceituosa, pois
a carta afirma que “todo cidadão tem direito ao
atendimento humanizado, acolhedor e livre de
qualquer discriminação
15
. Em 2011, o Ministé-
rio da Saúde lançou a Política Nacional de Saúde
Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis
e Transexuais através da portaria nº 2.836, que
normatizou o direito ao “uso do nome social de
travestis e transexuais, de acordo com a Carta dos
Direitos dos Usuários do SUS”
16
.
Porém, essas normativas ainda não foram in-
tegralmente acolhidas no cotidiano de trabalho
dos profissionais da saúde, impedindo a garantia
do acesso universal à saúde pelos pacientes trans.
O desrespeito ao nome adotado pelos participan-
tes dessa pesquisa nos serviços de saúde pública,
somado a outros episódios de discriminação pro-
movidos pelos seus profissionais, tem sido rele-
vante na não efetivação do acesso ao cuidado em
saúde. A entrevistada Afrodite (mulher transexu-
al, 24 anos) relatou: foi no DML que sofri precon-
ceito pelo médico. Eu pedi que me chamassem pelo
meu nome social. [...] Ele me chamou pelo nome de
registro e gritou pelo DML. Gritou porque ele sabia
que se tratava de uma transexual. [...] Ele não quis
me chamar porque segundo ele deveria me chamar
pelo nome da identidade. Afrodite procurou o
DML para realizar exame de corpo e delito após
ter sido vítima de estupro enquanto trabalhava. A
entrevistada comparou o atendimento no DML
ao recebido quando procura serviços públicos de
saúde: Eu evito muito. Se estou com uma dor de ca-
beça, alguma coisa, eu fico em casa, tomo remédio
em casa. Porque se você for, você vai passar raiva
mesmo, e aí é pior. Então, igual eu falei no caso do
DML, quando eu precisei procurar um serviço pú-
blico, o que aconteceu? Sofri preconceito no DML.
Já no hospital, não sofri preconceito. Mas no DML
sofri. Então, eu prefiro o quê? Ficar em casa. Apesar

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Rocon PC et al.
de relatar não ter sofrido discriminação no acesso
ao serviço de profilaxia pós exposição oferecido
no Hospital Universitário, foi enfática ao afirmar:
É por isso que uma transexual ou uma travesti não
procura um centro de referência pra fazer exames,
não procuram isso, não procuram um médico. Por
quê? Porque elas sabem que, se elas chegarem lá,
serão maltratadas. Então, ficam em casa.
Outros relatos que apresentaram discrimi-
nação e desrespeito ao nome social podem ser
destacados. Pandora (travesti, 43 anos) relatou
a discriminação sofrida em um Pronto Atendi-
mento ao buscar serviços de emergência por ter
perfurado o pé: As mulheres que trabalham na
entrada do posto viram que eu era travesti e eu
ainda falei: Olha, eu quero que me chamem por
Pandora. Na hora que foram me chamar, elas não
me chamaram por Pandora. Me deu um revertério.
Um colega meu, que trabalha lá, quebrou o pau lá
dentro. Eu estava cheia de dor por ter furado o pé,
o ferro tinha entrado pela bota e aconteceu isso.
Além de ter que lidar com a dor da lesão, Pan-
dora necessitou administrar o mal-estar de ser
discriminada publicamente pelos profissionais.
Efigênia (mulher transexual, 28 anos) assinalou
em seu questionário ter abandonado tratamen-
tos e deixado de procurar os serviços de saúde,
para não sofrer preconceito. Ela seguiu escreven-
do: Tem médico que trata bem e tem médico que
não respeita a orientação sexual e a identidade de
gênero, tem médico que não aceita o nome social,
que chama pelo nome de registro. Já presenciei dis-
criminação com amigas e até eu já sofri homofobia
e constrangimentos. Ísis (mulher transexual, 53
anos) responde se já sofreu discriminação: Já!
Mas cabe a nós chegarmos antes e falar como quer
ser chamada. Se eles ficarem de gracinha, a gen-
te dá show. A necessidade de “dar show” aparece
como estratégia de luta das pessoas trans pelo di-
reito aos serviços de saúde.
São muitos os relatos de indignação e tristeza
pelas dificuldades que têm representado buscar
ou frequentar um serviço de saúde. Resultados
semelhantes podem ser encontrados em outras
pesquisas
1,8,10
. Romano
8
, pela experiência como
médica no Programa Saúde da Família na Lapa/
RJ, relata o frequente abandono ou desistência
de tratamentos em andamento, mesmo nos ca-
sos de doenças crônicas ou graves como a Aids,
geralmente em decorrência do preconceito que
sofrem ao buscar atendimento no ambulatório. A
autora descreve o êxito na redução desse absen-
teísmo a partir de um trabalho de humanização
e acolhimento realizado junto aos pacientes e às
equipes do PSF-Lapa.
Muller e Knauth
10
relataram a recusa pelo
estabelecimento de saúde em atender o pacien-
te trans, o desrespeito à identidade de gênero
em casos de internação hospitalar, a resistência
de pessoas trans em buscarem serviços de saú-
de provocada pela discriminação, e o “dar show”
como forma de garantir atendimento. Segundo
os autores: A baixa instrução de grande parte das
travestis é um dificultador para que compreen-
dam questões cotidianas – como, por exemplo, o
uso do preservativo, mesmo em caso de soropo-
sitividade para HIV, a eficiência das medicações
utilizadas para o tratamento do HIV, as consequ-
ências da interrupção do uso dessas medicações
e o uso de drogas. Como podemos constatar na
pesquisa, muitas travestis [...] não fazem o uso
de preservativos em suas relações sexuais com os
clientes. Desse quadro, advêm três problemas de
saúde pública: 1. A reinfecção por cepas diferen-
ciadas do vírus HIV e a consequente resistência
às medicações; 2. O risco de contágio do cliente,
que em alguma situação chega a oferecer mais di-
nheiro para que não seja usada a camisinha na
relação; e 3. A possível transmissão do vírus HIV
ao cônjuge, pois a maioria dos clientes mantém
relação conjugal estável”
10
.
Sugere-se cautela em conclusões como as de
Muller e Knauth
10
para não moralizar a leitura
que é feita sobre o envolvimento de pessoas trans
nas redes de contaminação por HIV e outras Do-
enças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), dese-
nhando-as como grupo de risco responsável por
esse problema de saúde pública. Deve-se conside-
rar que muitas vezes a baixa instrução advém das
dificuldades de permanência na escola devidas
à discriminação, todavia, afirmar essa condição
como responsável por uma incompreensão sobre
os efeitos das medicações para o tratamento do
HIV e o uso do preservativo pode ser refutável,
devendo-se sugerir a incapacidade ou a indis-
posição dos serviços de saúde em comunicar-se
com a diversidade de sujeitos pela educação em
saúde.
Não se pode ignorar que intervir junto às
pessoas que trabalham sexo, dentre elas as trans,
a partir de programas de educação em saúde en-
volvendo as informações levantadas por Muller
e Knauth
10
, pode ser uma importante estratégia
de intervenção nas redes de infecção por HIV e
DSTs. Contudo, há uma série de problemas vi-
venciados por essas pessoas, apresentados nesta
pesquisa e em outras
1-3,8,9
, sobre discriminação,
marginalização social, pobreza, etc. que precisam
ser considerados na construção de intervenções
para educação em saúde, uma vez que o não uso

2521
Ciência & Saúde Coletiva, 21(8):2517-2525, 2016
do preservativo, por exemplo, pode representar
maiores ganhos financeiros que, considerando as
condições de vulnerabilidade e pobreza que mui-
tas vivem, tornam-se uma forma de garantir os
recursos necessários para alimentação, tratamen-
to em saúde, realização das modificações corpo-
rais desejadas, etc. Antes de representar um risco
à sua saúde ou à saúde dos clientes, o sexo sem
preservativo pode significar a sobrevivência.
Dentre as 15 pessoas trans, entrevistadas
nesta pesquisa, verifica-se que 60% trabalham
ou já trabalharam como profissional do sexo em
algum momento de suas vidas, tendo essa como
fonte de renda principal ou complementar. É sa-
bido que o trabalho com sexo envolve exposição
cotidiana a riscos de adoecimento pela contami-
nação por DSTs e à violência física por trans/tra-
vestifobia. Dessa forma, o acesso ao SUS consi-
derando os aspectos próprios às experiências das
pessoas trans, com a garantia do direito ao nome
social e ao atendimento livre de discriminação,
é indispensável para que consultas e exames de
rotina, informações sobre prevenção a doenças
infecciosas, distribuição de preservativos e géis
lubrificante para trabalharem possam produzir
efeitos positivos no cuidado com a saúde das pes-
soas trans.
O processo transexualizador como
possibilidade para promoção da saúde trans
A imagem e a aparência são atributos de
grande importância nas sociedades contemporâ-
neas ocidentais
17
. Muitas pessoas cisgêneras (que
não relatam incongruência entre seus corpos e
o gênero atribuído no nascimento) modificam
seus corpos por meio de dietas alimentares com
uso de suplemento ou produtos farmacológicos,
exercícios físicos, procedimentos estéticos, cirur-
gias, etc. em busca do corpo que lhes satisfaça,
capaz de promover bem-estar, sinônimo de saú-
de e beleza
17
. Da mesma forma, inúmeras pesso-
as trans investem na modelagem de seus corpos
como elemento constitutivo de suas vidas. O
que varia são os procedimentos de transforma-
ção corporal que, para as pessoas trans, podem
consistir em investimentos como: hormoniote-
rapia, aplicações de silicone industrial, mastecto-
mia, cirurgias plásticas ou de transgenitalização,
etc. em busca de um ideal de beleza associado à
construção das marcas de gênero. As técnicas de
transformação corporal implicam a transforma-
ção incorporal do corpo bonito, as modificações
no organismo influem na construção dos signos
de beleza – e vice-versa.
Helena (mulher transexual, 28 anos) justifi-
cou suas aplicações de silicone industrial: Acho
que para ficar mais próximo do meu desejo. Eu gos-
to de ser vista como mulherão. E gosto dessas mu-
lheres grandonas, bonitonas, gostosonas. Mulherão
chama mais atenção e eu gosto. Em Helena, o ideal
de beleza está associado ao ideal de gênero. Essa
idealização configura-se pessoal e socialmente
pelo desejo de chamar mais atenção. A figura da
mulherão operará como um objetivo a orientar a
modificação corporal por meio do silicone, um
signo que ordena o corpo durante os processos
de transformação. A partir desse panorama, os
motivos para a modificação corporal se diversi-
ficam, como se pode notar em outros estudos
1,5,7
.
A modelagem do corpo para agradar a si própria,
aos companheiros ou aos clientes não é uma par-
ticularidade na vida das mulheres trans e traves-
tis, inúmeras mulheres cisgênero podem modifi-
car seus corpos pelas mesmas razões. As propa-
gandas e os comerciais, o mercado de trabalho,
dentre outros, são variados incentivos para que
as pessoas, especialmente as mulheres, invistam
na transformação de seus corpos.
Mas é preciso, para não menosprezar e igno-
rar questões próprias às pessoas trans, atentar-se
aos aspectos de pobreza, homo/trans/travestifo-
bia, marginalização social, violência, evasão es-
colar, desemprego, perda de laços familiares
9,16
,
dentre muitos outros que compõem as vidas par-
ticipantes desta pesquisa. Pode-se assim perceber
as dificuldades que as travestis, os homens e as
mulheres trans enfrentam para alcançarem os
recursos para modificações de seus corpos – difi-
culdades que extrapolam as de homens e mulhe-
res cisgêneros. Pelúcio
7
, por exemplo, evidenciou
que as dificuldades financeiras determinam limi-
tes e possibilidades dos investimentos corporais
entre as travestis paulistanas.
As dificuldades para obter um efetivo amparo
pelo Sistema Único de Saúde às variadas motiva-
ções e necessidades de transformação do corpo,
atravessadas por diversos determinantes sociais,
levaram muitas entrevistadas a correrem risco de
adoecimento e morte por recorrerem ao uso de
hormônios sem acompanhamento de profissio-
nais de saúde e às aplicações de silicone indus-
trial. Desejo, sonho, necessidade e sobrevivência
se misturam na empreitada de modelar o corpo
sob riscos. Algumas entrevistadas relatam pro-
blemas de saúde decorrentes desses métodos. Se-
gundo Cassandra (travesti, 31 anos), aconteceram
situações de pessoas morrerem nas mãos da bom-
badeira […]. Eu tive várias amigas que tomaram
hormônio e tiveram câncer. Ísis relatou: Pode mor-

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